Espero não estragar a história por contar já o final, mas tenho que proclamar que já cheguei a Portugal. Vivo, nem um arranhão.
De qualquer maneira, vou descrever aqui as últimas etapas da aventura, para quem quiser saber como é que se atravessa a Etiópia, o Sudão e o Egipto, com acidentes, Ramadão e pirâmides pelo meio. E umas fotos para deixar água na boca.
Então vamos lá organizar isto. Saí de Angola a 6 de Junho, apanhei o barco no lago Tanganika a 24 de Junho, cheguei a Nairobi a 16 de Julho, parti de Addis-Ababa a caminho do Sudão no dia 30 de Julho, às 5 da manhã. E a viagem começou mal.
Tinha comprado o último bilhete disponível para aquela camioneta. Um lugar logo na primeira fila. Para ver a paisagem é óptimo, mas…
Ao fim de uma hora de viagem, acordei de repente com gritos. Mal tive tempo de ver o camião que vinha a descer para um choque frontal connosco. Só tive tempo de me proteger com os braços, e ouvir o estrondo do choque. Abri os olhos, vidros por todo o lado, mas estava toda a gente bem. O motorista conseguiu desviar a camioneta e o choque foi só de esquina com esquina. Ninguém se magoou, mas deu para o susto. A camioneta estava KO. Saímos todos, descobrimos que o camião tinha perdido os travões na descida e andava aos “eses” para tentar abrandar. Apesar do estrondo e do estado do camião, ninguém se magoou. E seguir viagem? Pois bem, acho que nem em Portugal isto acontecia: passado 2 horas, veio outra camioneta da mesma companhia, mudaram-se as malas, e siga viagem!
Com umas horas de atraso, chegámos a Bahir-Dar já de noite. A cidade fica nas margens do lago Tana, origem do Nilo Azul! Moto-táxi, hotel.
Dia seguinte levantar cedo para ir visitar os mosteiros do lago. Existem várias ilhas espalhadas, e cada uma delas tem pelo menos um mosteiro. Estes mosteiros são coisas pequenitas, alguns só uns casebres para alojar os monges. Depois de negociar um barquito, fomos passear de ilha em ilha, com as nuvens sempre a prometerem apanhar-nos a meio de uma das travessias. Este lago tem uma característica muito curiosa: as águas são castanhas. Não um castanho sujo, de lama a flutuar. A própria água é castanha. Estava a passear num grande lago de leite achocolatado. Para terminar o passeio, uma visita ao ultimo mosteiro, no inicio do Nilo (mas azul por quê?!?!) Vi os primeiros papiros da viagem, as famosas plantinhas com que os antigos deste rio faziam o papel dos pergaminhos.
Descobri também que andaram por aqui uns portugueses, uns 4 séculos atrás, uns bons duns jesuítas, que deixaram uma ponte de recordação. Ainda lá está, dizem. Eu não vi, porque era longe e eu estava era com pressa de chegar ao Egipto!
Dia seguinte, como sempre de madrugada, candongueiro para a próxima cidade. Foi engraçado, porque como de costume, o condutor durante a viagem tentava meter mais e mais gente no carro. Mas desta vez, umas senhoras chatearam-se e começaram a mandar vir com ele. “Mas então eu paguei bilhete e tenho que ir apertada?!!??!”- lá no aramaico delas. E não entrou mais ninguém!
A viagem é pelo meio de campos verdes, cheios de água. A terra está encharcada, riachos por todo o lado, no meio dos campos, parece que a terra está empapada. Basta pisar, e nasce um ribeiro. Tanta água…
O candongueiro chegou ao centro de Gonder meio da tarde. As nuvens já tinham começado com uma das muitas descargas diárias. Hotel, reorganizar, descansar e preparar dia seguinte. Que serviu para visitar os castelos da cidade. Foi aqui que me apercebi que a Etiópia era a transição das Áfricas. Aqui já existem civilizações antigas, milenares. Castelos antigos, e igrejas que não foram feitas pelos colonos. Algumas foram feitas antes sequer dos colonos terem chegado ao país deles.
Os castelos são imponentes, feitos ao longo de 2 séculos, com clara influência europeia, mais propriamente portuguesa! Pois é, os jesuítas sempre a pôr a mãozinha deles. Depois vieram os italianos e os ingleses e durante a II Guerra Mundial bombardearam metade daquilo. Selvagens… Aproveitei que estava um italiano no grupo para apresentar a devida reclamação.
Depois do passeio, fiz as malas para a jornada do dia seguinte. Objectivo: chegar a Khartoum, capital do Sudão, num dia. 800 Kms, no mesmo dia.
Madrugada seguinte (estou farto de escrever isto), parti finalmente em direcção ao Sudão!
Às 4.30 da manhã, moto-taxi para a estação de camionetas. Partida no candongueiro das 6. Atravessar as montanhas verdes de chuva durante 4 horas, e então começamos a descer. Durante uma hora sempre a descer a montanha, até que no ponto onde acabam as montanhas e começa o deserto, aparece a cidadezinha de Metema, fronteira com o Sudão. Uma cidade fronteira, só com barracas e um mercado que vive das trocas com o outro lado. A pé chego à cancela da fronteira. Está quase no meio das barracas da feira. Procuro o posto da imigração. Levo o carimbo de saída e, mochila às costas, atravesso para o Sudão. Do outro lado, mais uma cancela manhosa, mas menos barracas. Mas encontrar os 3(!) postos de controlo já foi mais difícil. 3 diferentes, incluindo o da policia de segurança especial, onde me informaram que tenho dois dias para me registar no posto em Khartoum. Com a passagem por estes postos apercebi-me de uma coisa: cheguei ao Ramadão! Toda a gente está meia a dormir. De noite comem e divertem-se, de dia dormitam… Há colchões nos escritórios, onde a malta aterra sempre que não há clientes. E nesta fronteira, não há muitos clientes.
Consigo apanhar rapidamente um candongueiro para Gedaref, próxima terra no caminho. Este é dos apertadinhos. Vou frente a frente com outro, e temos que ir com as pernas intercaladas para cabermos. Na estrada, várias operações stop da polícia de segurança especial. Uns, para mostrarem serviço, revistaram a mochila do turista. Como depois foi mal amarrada, saltou do carro a alta velocidade e andou uns 20 metros a comer asfalto. Muitos arranhões, mas nem um rasgãozinho. É rija, a gaja!
Entretanto, a paisagem já tinha mudado: depois da fronteira, das montanhas nem vê-las. Plano, mas ainda verde. Verde que foi secando até Gedaref.
Chegados a Gedaref, vai de pick-up até à outra estação de camionetas. Saltar e correr para apanhar a ultima camioneta do dia, com destino final: Khartoum! Camioneta das boas, limpinha e ar-condicionado.
Saímos da estação das camionetas, e aparece então o deserto. E com o deserto, os camelos. E eu feliz da vida. Objectivo quase cumprido. A viagem não vai custar nada!
Mas começou-me a dar a fome. Eram 3 da tarde e ainda não tinha comido nada desde o jantar. Mas numa camioneta apinhada de muçulmanos, no Ramadão, não é boa ideia comer durante o dia. Especialmente muçulmanos do Sudão.
Antes do pôr-do-sol, não comem nem bebem. Pois bem, assim que o sol se puser, ataco as batatas e bolachas que tenho na mochila! E vão as 3. E as 4. E as 5. E as 6. E as 7! Mas o raio do sol não se põe!?!? Faltavam uns 5 minutos para o sol tocar a areia, eu já de mochila aberta, e a camioneta pára. Mas que raio!? Sai toda a gente, e, na berma do deserto (ou da estrada, depende de quem olha), estavam umas esteiras no chão. Vai toda a gente lavar as mãos e os pés com umas jarrinhas de água que estavam espalhadas pelo chão, e sentam-se em grupos à volta de taças, espalhadas pelas esteiras. O motorista convida-me para sentar com eles. Lavo as mãos e os pés, como faço sempre em casa, sento-me com eles e ficamos a olhar para uma papa dentro das taças, e uns pratos com grão-de-bico. E comer? Como para me responder, ouve-se uma voz por uns megafones a fazer as preces, e toda a gente ataca a comida. À mão, pois claro. Toca a rapar as taças que a fome aperta! Várias pessoas vieram oferecer-me chá, e perguntar se precisava de mais alguma coisa. Em 5 minutos a comida voou. Saí então da esteira, que foi logo ocupada pelos meus companheiros, que, ao sinal de um guia, começaram a fazer a oração da hora. De joelhos, em pé, cabeça no chão, durante 5 minutos, todos coordenados, agradeceram e saudaram Alá. Um dos homens que não estava a rezar veio ter comigo. Contou-me que era cristão, que havia muitos no Sudão. Embora não fossem muçulmanos, durante o Ramadão seguiam a tradição de receber e oferecer comida a estranhos e mais necessitados. Agradeci-lhe profundamente. Voltamos para o nosso bicho da estrada, e partimos, já noite, para atravessar o deserto que faltava.
Às 11 da noite paramos na estação de Khartoum. Sem fazer a mínima ideia onde estava na cidade, perguntei ao motorista:
- My friend, como é que posso ir para o centro da cidade?
- Centro? Olha, toma estas cinco libras, e apanha um táxi. É a melhor maneira.
Parvo foi como fiquei.
- Estás a dar-me dinheiro para apanhar um táxi?
- Sim sim, vai. O táxi é a melhor maneira!
Mas que país é este em que, em vez de me pedirem dinheiro, me dão dinheiro para eu apanhar o táxi?!
Agradeci, ainda com uma cara de parvo, e fui apanhar o táxi do outro lado da rua.
Depois de 17 horas de viagem e fome, senti-me bem-vindo e bem recebido. Este pessoal do Sudão, é gente boa!
Lago de chocolate |
Mosteiro |
Pinturas no mosteiro |
Cais de embarque |
O cais das colunas |
O inicio do Nilo Azul! |
Foi na Etiopia que descobriram o café! |
A molecada |